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Sem Steve Jobs há 10 anos, Apple rentabiliza legado e dobra de tamanho

O ano era 1997, e Steve Jobs, também considerado um fora de série, assumia a presidência da companhia, cofundada por ele em 1976

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Einstein, Bob Dylan e Martin Luther King aparecem em um comercial da Apple que exalta loucos, rebeldes e desafiadores do status quo. Com o slogan “think different” (pense diferente), a empresa iniciava, para além da propaganda, uma fase inovadora, cujo principal fruto foi o iPhone. O ano era 1997, e Steve Jobs, também considerado um fora de série, assumia a presidência da companhia, cofundada por ele em 1976.

Dez anos após sua morte, completados nesta terça-feira (5), a Apple perdeu um pouco de loucura e rebeldia, mas foi capaz de rentabilizar o legado de Jobs, que reanimou a empresa à beira da falência.

Nas mãos do sucessor Tim Cook, a empresa cresceu 120% em receita e se tornou a primeira americana a alcançar US$ 1 trilhão em valor de mercado. Também foi a primeira a alcançar US$ 2 trilhões de valor de mercado –esta última marca batida durante a pandemia de Covid, pior crise econômica global recente. A valorização na bolsa foi superior a 1.400% na década.

Os ganhos de 2020 foram de US$ 274,5 bilhões (quase R$ 1,5 trilhão). No trimestre finalizado em julho deste ano, o resultado chegou a US$ 81,43 bilhões (R$ 438 bilhões), uma alta de 36,4% impulsionada pelas vendas na China.

Do dia em que Jobs ocupou a presidência até a saída, quando já estava frágil e debilitado por um câncer no pâncreas, inaugurou a era dos dispositivos móveis, e o fez muito além dos limites de sua companhia. Mais do que lançar produtos e fã-clubes fiéis, criou uma demanda de consumo constante, grande ativo para um capitalista. iPhones, iPads, iPods, iTunes e iMac estimularam concorrentes e fermentaram a indústria de tecnologia móvel nos anos 2000.

Embora o iPhone não tenha sido o primeiro celular inteligente –o Blackberry, anos antes, já indicava que era promissor adicionar funcionalidades a um telefone–, ele demonstrou que design, teclado touchscreen e tela ampla poderiam transformar a maneira de usar o celular e criar novos hábitos.

No lançamento do iPhone, a Apple vendeu 1 milhão de aparelhos em dois meses (a título de comparação: a linha do iPhone 12, de 2020, vendeu mais de 100 milhões em sete meses).

No Brasil, com consumidores chamados pela indústria de early adopters –bem dispostos a gastar para obter uma novidade–, o iPhone estreou com sucesso, mas chegou oficialmente um ano mais tarde, com o modelo 3G (o segundo da marca).

Item de luxo diante dos impostos e da desvalorização do real, tornou-se prática comum adquirir um aparelho de uma ou duas edições passadas para garantir um celular com a maçã estampada na traseira. Operadoras estimularam o comércio ao vender iPhones com desconto junto aos planos de telefonia.

Poucos anos após o lançamento, veio o tsunami de aplicativos para celulares: redes sociais de fotos, serviços de música e toda uma economia baseada em operação digital. Grandes empresas de software podem ser consideradas subprodutos do terreno que a Apple ajudou a fundar.

“O maior legado de inovação de Jobs não é tablet ou smartphone, que já existia, também não é a interface gráfica, copiada da Xerox, é a experiência do usuário. Virou uma disciplina. Qualquer empresa hoje leva isso a sério”, afirma Cláudio Oliveira, coordenador do Núcleo de Transformação Digital da ESPM.

Além da busca pela usabilidade perfeita –que gerava processos de trabalho repetitivos e desgastantes segundo relatos de funcionários–, Jobs era hábil e polêmico para vender as ideias da Apple (não à toa suas frases ainda inspiram empreendedores que tentam imitar seu estilo mundo afora).

As ideias da Apple nasceram no ambiente pós-hippie da Califórnia, berço de movimentos de contracultura e o principal destino dos artistas da geração beat. A empresa foi criada na casa dos pais de Jobs, em Los Altos, por ele e Steve Wozniack. O logo da maçã era pintado com as cores do arco-íris.

Os primeiros computadores dos anos 1980 representavam a vanguarda tecnológica. Os jovens engenheiros do Vale do Silício encaravam a informática como uma forma de romper com estruturas de poder vertical e fazer a informação circular. Jobs era simpático ao budismo, sem diploma universitário e entusiasta de LCD, um tanto diferente do padrão de empreendedores americanos engravatados.

Criada com esses ideais liberdade vigentes à época, a empresa, no fim, ganhou reconhecimento com um sistema operacional de código fechado, o iOS. A exigência sobre os aplicativos vendidos na loja da Apple é maior que no sistema Android, desenvolvido pelo Google. A companhia detém toda a cadeia de hardware, software e serviço e fideliza clientes vendendo confidencialidade e privacidade.

“O usuário que compra sabe que o conjunto da obra vai funcionar bem do início ao fim, isso importa mais para a Apple que a escala”, diz Oliveira.

No segundo trimestre deste ano, segundo a Counterpoint, a companhia americana perdeu fatia de mercado de smartphones para a chinesa Xiaomi pela primeira vez. As vendas globais são lideradas por Samsung (18%), seguida de Xiaomi (16%) e Apple (15%). As marcas da China vêm conquistando clientes no Ocidente com preços mais em conta e hardware de qualidade –na época do TikTok, boa câmera e bateria com valor acessível são suficientes para abocanhar parte considerável dos consumidores.

Perder espaço no top três das vendas não é impeditivo para o lucro crescente. Embora não tenha conseguido penetrar o mercado de assistentes domésticos com o mesmo êxito de Google e Amazon, por exemplo, a Apple tem importante receita com serviços ao cobrar 30% das transações de aplicativos autorizados em sua loja.

Essa dinâmica, no entanto, tem alertado o mercado com a notória batalha judicial que a empresa enfrenta com Epic Games, dona do jogo Fortnite, que acusa a Apple de monopolizar o setor de aplicativos, impedindo a inovação e o crescimento de outras companhias.

A empresa está menos dependente do iPhone em relação ao passado, mas ele se mantém há uma década como carro-chefe. Apesar do relógio inteligente, da evolução de computadores e da entrada no streaming, não houve outro produto capaz de criar demanda como fez seu celular em 2007.

“A Apple pode não ser a líder em vários segmentos, mas precisa ter pessoas que paguem por isso. O Spotify tem uma base maior, mas a base pagante do Apple Music é muito boa. É uma empresa que precisa reforçar a presença dentro do seu ecossistema, mas que consegue equilibrar isso com um hardware desejado, com um software confiável e também com conteúdo reconhecido –talvez o maior desafio”, afirma André Pase, professor de Comunicação Digital da PUCRS.

O especialista lembra que “pod” tem uma conexão com o finado iPod, uma indústria que a empresa ajudou a nascer mas cujo interesse é levar para o Apple Music e para os AirPods.

Durante a pandemia, um movimento chamou a atenção de analistas: os tablets voltaram ao centro das vendas, impulsionadas pelo trabalho e estudo remotos. O produto deve vai receber atenção da companhia, que aposta fichas para que o dispositivo móvel compacto seja cada vez mais semelhante a um Macbook.

Também foi durante a crise de Covid que a Apple demonstrou o resultado de sua credibilidade no mercado financeiro. Assim como outras gigantes, que se beneficiaram das atividades online nos períodos de restrição social, como Amazon, Google, Facebook e Microsoft (que formam a sigla Faamg), a empresa se valorizou e quase dobrou de lucro.

Um dos pontos que agregaram à boa performance foi a administração de Tim Cook em um cenário de escassez global de componentes.

O grupo Faamg não cresceu apenas na crise sanitária, ele é destaque no mercado de ações desde 2010. No período, com Cook no comando, as ações da Apple se valorizaram 1.400%, perdendo apenas para a Amazon, que acumula ganhos de 2.000%.

“Foi a década delas e isso se intensificou na pandemia, quando várias tendências de consumo que já estávamos vendo se aceleraram, e isso puxou muito o índice S&P 500”, diz Jennie Li, estrategista de ações da XP Investimentos. A Apple foi considerada um porto seguro a investidores, e a expectativa em torno dela só gera mais valorização.

Na iminência da morte de Jobs, o mercado questionava se Cook conseguiria manter o crescimento da empresa ou ficaria na eterna sombra de seu genial antecessor.

Alguns atributos de sua personalidade, menos intempestiva e arrogante, se mostraram bem-vindos em um mundo corporativo intolerante a ordens da chefia seguidas de “seu idiota” ou de críticas adjetivadas (“seu trabalho é um cocô de cachorro”, dizia Jobs a um empregado).

A reputação de Cook, um bom administrador, com domínio da cadeia de suprimentos global, publicamente homossexual, mais sensível aos trabalhadores e menos egocêntrico, é percebida como um trunfo à empresa.

Em 2012, ele optou que a Apple abandonasse o Google Maps e usasse um aplicativo próprio de mapa no iOS 6. A companhia foi inundada de críticas pois o serviço era impreciso. Cook escreveu uma carta aberta se desculpando e dizendo estar “extremamente arrependido pela frustração”.

Dois anos antes, um problema no iPhone 4 fazia cair o sinal quando as pessoas o seguram de determinada maneira. A reação de Jobs foi dizer aos clientes: “evite segurar dessa forma”.

Embora mantenha boa parte das diretrizes mercadológicas de Jobs, Cook aposta em mudanças que seriam contestadas pelo antecessor. “Ele está aceitando usar um lápis [no iPad], por exemplo, algo que o Jobs reprovaria com todas as forças”, pontua Pase.

Apesar de mudanças de rotas pontuais e da dificuldade de uma nova revolução de mercado como a protagonizada a partir de 2007 (financeiramente não mais necessária à Apple), Tim Cook aposta na manutenção do legado de Jobs.

“Quero que ele esteja com a Apple daqui a dez anos, daqui a cem anos, daqui a mil anos”, disse em um evento anos atrás.

Por Folha Press

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