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Por que a nova lei geral do esporte está gerando protestos dos jogadores de futebol

Legislação busca modernização, combate o preconceito e cria indenização para técnicos, mas atletas se sentiram prejudicados.

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Nas últimas semanas, jogadores das Séries A, B, C e D do futebol brasileiro têm se manifestado contra itens da nova Lei Geral do Esporte, aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 6 de julho. A discussão, mais do que os pontos reivindicados pelos atletas, revela um desejo de eles se mostrarem mais engajados em suas causas. Contrários às alterações no texto, desde a rodada seguinte à aprovação, os jogadores tapam a boca com as mãos e ficam imóveis por cerca de um minuto no início dos jogos.

A nova lei questiona até que ponto eles, que atuam nas principais competições do Brasil, não estão acomodados com os privilégios recebidos muitas vezes de maneira desproporcional em relação a outros setores da sociedade.

A legislação esportiva foi criada, segundo o relator da lei, o deputado Felipe Carreras (PSB-PE), com o objetivo de modernizar a atual Lei Geral do Esporte, denominada Lei Pelé, do ano de 1998. Na nova Lei do Esporte, os técnicos terão o direito formal a indenizações em caso de demissão, nos mesmos moldes dos jogadores, algo que não havia na antiga Lei Pelé. Poucos técnicos conseguem cumprir os contratos que assinam.

Composta por 224 artigos, a legislação tem a finalidade de fornecer novas regulamentações de profissões ligadas à educação pelo esporte; aumentar o incentivo fiscal para empresas investirem nas modalidades; punir com rigor atos racistas; e aumentar o porcentual de mulheres no comando das entidades, entre outros.

CONTRARIEDADE

Mas os jogadores de futebol não gostaram dos artigos que determinam que as multas rescisórias podem cair pela metade. E que seu pagamento (das multas) deve ser interrompido no momento em que eles passarem a atuar por outro clube, recebendo nova remuneração mensal.

Carreras diz que a reação dos atletas foi precipitada e pautada em informações distorcidas. O deputado destaca que, ao contrário do que passou a ser veiculado, a redução das multas não é obrigatória.

“O que mudou na lei é que agora o clube pode propor, na elaboração do contrato, uma negociação para a multa, chegando até a 50%. Não quer dizer que deixará necessariamente de ser 100%. Pode até ser mais. Ou menos, agora. A questão é que a multa de 100% tem quebrado muitos clubes, pela falta de equilíbrio”, explica.

O deputado acrescenta que, por outro lado, há pontos em que os jogadores ganham mais direitos. Como exemplo, cita uma cláusula que se tornou mais rígida com os clubes que atrasam salários, que diminui o período máximo de três para dois meses de atrasos para o atleta ter direito à rescisão. “Considero uma conquista para a classe dos jogadores”, diz.

Como houve algumas alterações em relação ao texto analisado no Senado, o projeto terá novamente de passar pela aprovação dos senadores.

TÉCNICOS

Pela nova legislação, o valor da cláusula compensatória (multa pela rescisão) será livremente pactuado entre as partes e formalizado no contrato de trabalho, observando-se como limite máximo 400 vezes o valor do salário mensal no momento da demissão e, como limite mínimo, metade do valor a que teria direito o atleta ou o técnico até o fim deste contrato.

“O treinador também passou a ter direito a indenização incluído na legislação. Até agora não havia essa obrigação, tudo era tratado na negociação do contrato. Muitos técnicos continuam recebendo o salário integral até o fim do período do contrato, após serem demitidos. Mas isso ocorre porque os clubes aceitam. Pela Lei Pelé, não haveria essa obrigação de uma indenização. Agora, a lei irá exigir (se for aprovada)”, explica Carreras.

Ele é torcedor do Sport e costuma ir com frequência à Ilha do Retiro. Diz que sempre acompanhou futebol, mas que, neste momento, não segue com tanta intensidade o noticiário, como fazia nos tempos em que era jovem.

Ele ressalta que, inicialmente, a proposta a ser avaliada pelo Senado contou com a aprovação dos clubes. Alguns deles, segundo o deputado, recuaram após as manifestações e as reações contrárias nas redes sociais dos jogadores, inclusive. “Percebi que os clubes grandes de São Paulo, por exemplo, recuaram na demonstração de apoio, após algumas reações negativas em relação à lei. Espero que todos mantenham o apoio inicial.”

Para Carreras, a nova legislação é um instrumento para os clubes olharem mais para médio e longo prazos, em vez de apenas para a próxima partida ou temporada. “A lei abre espaço para maior equilíbrio financeiro. Para o clube, é a oportunidade de diminuir gastos, mas também de planejar seu orçamento. Muitas vezes, o jogador que tem contrato de quatro anos não vai bem no primeiro ano e rescinde, segue recebendo integralmente, mesmo se contratado por outro time. Isso acaba com as finanças dos clubes. Nenhum trabalhador em outros setores no Brasil recebe 100% de multa ao rescindir. O máximo é 40%. Mas cabe aos clubes também pensarem o que podem gastar antes das contratações”, comenta o deputado.

Nem o fato de a carreira do jogador de futebol ser mais curta, em comparação com a de outros setores, convence o deputado do contrário. Em média, o atleta atua por 20 anos. “O tempo de carreira de um jogador chega a ser de 20 anos, recebendo um salário, nos clubes de maior porte, bem superior à média dos brasileiros. Quem decide entrar de forma profissional no esporte sabe sobre a duração da carreira. Além disso, salvo exceções, atletas de outros esportes também têm um tempo mais limitado de atuação e lidam com essa mesma questão em relação aos ganhos financeiros.”

CONTRATOS

Carreras acrescenta que, na elaboração da lei, houve preocupação em proteger jogadores que tenham até 12 meses de contrato. Para eles, o valor das multas continuará a ser obrigatoriamente de 100%. “Jogadores com até 12 meses de contrato, em geral, são os de clubes de menor porte, que disputam uma ou duas competições por temporada e ficam boa parte do ano sem competir. Para esses, se houver a rescisão no período, o prejuízo será grande, por isso mantivemos a multa rescisória de 100%.”

Em nota, a União dos Atletas de Futebol das Séries A, B, C e D, grupo que encabeça as manifestações, fez críticas à nova legislação. “O artigo 84 acaba com a natureza salarial das premiações e luvas: menos verbas trabalhistas. O artigo 85, 5.º e 6.º parágrafos, praticamente extingue a cláusula compensatória (multa rescisória) a nosso favor: podemos ser mandados embora sem nada a receber. O artigo 96, VII, 3.º parágrafo, cita que a nossa hora noturna será só a partir das 23h59, enquanto a de qualquer trabalhador é a partir das 22h. Nossa noite é diferente?”

A nota divulgada pelo grupo, compartilhada pelos jogadores, também diz que não houve consulta à categoria. Por isso, os atletas têm tapado a boca antes das partidas. Por ora, apenas os atletas do futebol têm se manifestado. “O artigo 164, parágrafo 2.º, possibilita o aumento da verba paga como direito de imagem. Menos verbas trabalhistas. E tudo isso sem sermos ouvidos?” Os atletas apoiaram contrapartidas apresentadas ao projeto pelo senador Romário, ex-atacante da seleção.

Carreras, porém, não reconhece a União dos Atletas de Futebol das Séries A, B, C e D como interlocutora legítima dos jogadores. Para ele, a classe está fragmentada e não possui uma entidade que a represente formalmente. “Passamos vários meses ouvindo entidades de todos os esportes, inclusive do futebol. Conversamos com a Fenapaf (Sindicato dos Atletas Profissionais de Futebol do Brasil), com o presidente da FAAP (Federação das Associações de Atletas Profissionais), Wilson Piazza, falamos com o deputado Danrlei de Deus Hinterholz, ex-goleiro do Grêmio… Mas, em termos de representatividade, não há hoje nenhuma entidade que fale pelos jogadores. Quem é o representante que integra os jogadores hoje? Não há. O grupo que comandou a última manifestação não tem nem CNPJ”, disse. “Estou aberto a conversar, desde que a entidade seja verdadeiramente representativa da classe dos atletas.”

Na opinião do deputado, o cenário serviu para retratar a falta de organização da classe dos jogadores de futebol. “Esse debate levantado com a nova legislação já é importante. Os jogadores precisam se organizar, ter representatividade e se sentir representados. É uma classe fragilizada. Nessas manifestações se viu isso. Foi um ‘copia e cola’ de informações distorcidas, que atendiam a outros interesses”, diz. A Liga ainda não andou.

DIREITO DE IMAGEM

O advogado do Sindicato dos Atletas do Rio Grande do Sul, Décio Neuhaus, considera que a nova legislação, se aprovada, trará, sim, perdas de direitos aos jogadores. Ele engrosso esse coro. Destacou que, nos casos de rescisão, o clube paga a multa por meio de duas cláusulas: indenizatória e compensatória.

“As cláusulas indenizatórias e compensatórias são regras para quem deseja romper o contrato. Usualmente, o clube estipula a indenizatória em 2 mil salários e a compensatória fica no que falta ser cumprido. Mas o clube é a parte forte ao impor as todas as condições”, ressalta o advogado.

Neuhaus acrescenta que a legislação pode gerar instabilidade aos atletas que, segundo ele, costumam ser a parte mais vulnerável na negociação. “Pelas regras da Fifa e nos principais centros mundiais de futebol, no caso os campeonatos da Europa, existe o princípio da estabilidade contratual, em que um contrato só pode ser rompido unilateralmente se houver um justo motivo. Se não houver, paga-se integralmente. A nova regra vai incentivar os péssimos administradores, pois vão contratar mais e irresponsavelmente mandar embora”, aponta.

Na nova legislação, ainda, o direito ao uso da imagem do atleta não poderá ser superior a 50% da sua remuneração estabelecida em contrato. O chamado direito de imagem é uma forma de remuneração relacionada à veiculação da imagem do jogador. Neuhaus afirma que o direito de imagem também deve ser considerado remuneração para o jogador.

“O direito de imagem surgiu no Brasil na segunda metade dos anos 90 e foi visto como uma forma de ludibriar a relação trabalhista. No ano 2000 havia um atleta aqui no Rio Grande do Sul que ganhava R$ 1 mil de salário e R$ 49 mil de imagem. A economia era porque o clube só recolhia FGTS, pagava férias e 13.º salário sobre os R$ 1 mil. Na época, o contrato só podia ser rompido com atraso salarial. O clube não atrasava os R$ 1 mil, só atrasava os R$ 49 mil e o contrato se mantinha firme. Somente em 2013 é que o atraso de imagem foi colocado na lei para romper o contrato”.

Na visão de Neuhaus, a nova legislação, que aumenta o porcentual de direito de imagem (até então o máximo era 40%), também pode ser prejudicial aos jogadores, já que, em tese, o valor dos contratos de trabalho, considerados a base dos cálculos de multas e de benefícios trabalhistas, irá diminuir.

FLEXIBILIDADE

Ao analisar os prós e contras da nova lei, o advogado Tullo Cavallazzi Filho, especialista em direito desportivo, diz que com o tempo os atletas se adaptarão às regras da legislação. “A lei acaba flexibilizando por parte do empregador situações que os atletas tinham garantidas no contrato. Essa possibilidade de flexibilização deu a eles a sensação de perda de direitos. Mas a lei vai se adequar à realidade dos clubes. Com o tempo, como houve adequação à nova lei trabalhista, também haverá a esta”, comenta.

No atual contexto, com a Série A tendo uma média salarial de R$ 207 mil (em 2019, segundo a consultoria Sporting Intelligence), os atletas dos chamados clubes grandes se distanciaram de qualquer interesse em defender melhores condições de trabalho. Em tese, não sentem necessidade e não pensam nos outros.

Mas, conforme ressalta o advogado, essa defesa é necessária para a maioria dos jogadores no Brasil, aqueles que ganham de 1 a 2 salários mínimos por mês. Segundo ele, apenas 1% deles ganha de R$ 50 mil para cima.

Via Terra Notícias

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