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Como o Brasil virou o país do surfe e por que legado já está sob alerta

Geração que chegou ao topo do mundo foi formada com circuito nacional forte e eventos amadores que hoje sofrem com crise econômica e falta de investimento

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O circuito mundial de surfe virou quase um Brasileirão. Na madrugada de ontem, Filipe Toledo e Tatiana Weston-Webb  fizera, uma dobradinha em Margaret River, na Austrália, vencendo a quarta etapa da temporada. Foi a segunda final seguida de Tatiana. Entre os homens, já são 11 etapas consecutivas com ao menos um brasileiro participando da decisão. Nas últimas três, vitórias de Italo Ferreira, Gabriel Medina e Filipe, trio que está no topo do ranking da World Surf League (WSL). Se o presente é de domínio incontestável, e pode render medalhas nos Jogos Olímpicos de Tóquio, e o futuro imediato também parece promissor — Italo e Medina têm 27 anos, Filipe, 26, e Tatiana, 25 —, uma olhada a longo prazo levanta algumas preocupações. Como ficará o cenário após a passagem dessa chamada “tempestade brasileira”?

Italo, Medina e Filipe são os representantes mais destacados da geração que ficou conhecida como “brazilian storm” por tomar de assalto o circuito mundial, seguindo os passos de nomes como Fábio Gouveia, Flávio Padaratz e Victor Ribas (no fim dos anos 80 e início dos 90) e, mais recentemente, Adriano de Souza, que anunciou sua aposentadoria ao fim desta temporada. Foi um trabalho de décadas, com cada personagem construindo seu papel na história.

A gente vem ralando há muito tempo. Minha geração pegou um momento muito bom de investimento, com o mercado do surfe bombando, organizado. A “brazilian storm” veio de um circuito amador forte, com competição acirrada entre cada estado. E depois ainda tivemos o SuperSurf, que foi um ótimo aprendizado — diz o ex-surfista profissional Fábio Gouveia, que chegou a ser número 5 do mundo em 1992. — Mas no momento não tem uma organização 100%, a galera não está feliz com a organização atual.

— O Brasil domina o circuito hoje porque construiu uma geração muito bem trabalhada, que recebeu muito investimento. Existia uma engrenagem que funcionava. Os circuitos amadores eram prestigiados, havia um intercâmbio, os atletas que se destacavam conseguiam patrocínio. A economia brasileira estava forte. Essa engrenagem não existe hoje. Existe trabalho de base, mas não é mais como era antes. A tendência é que vai ser mais dificil formar novos Medinas, Mineirinhos — analisa Marcelo Andrade, diretor executivo da Associação Brasileira de Surfe Profissional (Abrasp) de 2003 a 2012.

Filipe Toledo e Tatiana Weston-Webb se abraçam ainda na água comemorando a vitória em Margaret River Foto: Cait Miers / WSL
Filipe Toledo e Tatiana Weston-Webb se abraçam ainda na água comemorando a vitória em Margaret River Foto: Cait Miers / WSL

Ao mesmo tempo em que traça o panorama do que levou a esse momento especial, Marcelo Andrade é sucinto ao fazer uma avaliação pessimista:

— Hoje vivemos um período totalmente diferente de quando esses atletas surgiram.

O fim do SuperSurf

A crise econômica aparece nas respostas de praticamente todos os convidados a analisar a fase atual do surfe brasileiro. A pandemia agravou a situação, mas, mesmo antes da Covid-19 surgir, o circuito nacional já vivia momentos de dificuldade. Na época de vacas gordas, o SuperSurf movimentou o esporte na década de 2000, com premiações altas, boa estrutura e muito espaço na mídia. O título brasileiro era cobiçado. Numa inversão preocupante do dito popular, depois da bonança, veio a tempestade. O SuperSurf chegou ao fim e nunca mais o circuito nacional teve o mesmo prestígio.

— Além de um circuito amador organizado, existia um profissional muito forte, dos mais fortes do mundo. Os atletas tinham incentivo para crescer. Nenhum outro esporte com exceção do futebol tinha aquela premiação (R$ 100 mil por etapa, mais um carro para o campeão brasileiro) naquela época. Era uma bolha que explodiu. Tivemos que nos readaptar e cair na realidade — diz Pedro Falcão, diretor executivo da Abrasp. — O surfe, como qualquer esporte, depende de um país num momento bom. Desde 2019 vivemos uma crise que prejudica muito os investimentos das empresas, e o mercado do surfe não tem mais a força que tinha.PUBLICIDADEhttps://4a3cf01a2cd3f0435264008f8db72f56.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

Italo Ferreira lidera o circuito mundial de surfe Foto: WSL
Italo Ferreira lidera o circuito mundial de surfe Foto: WSL

O circuito amador no Brasil é tradicionalmente organizado pela Confederação Brasileira de Surf (CBSurf), que se vê às voltas de polêmicas envolvendo seu presidente. Adalvo Argolo, que chegou a ser afastado do cargo no fim de 2018 acusado de irregularidades na prestação de contas, foi reeleito em dezembro, mas a eleição foi anulada por descumprimento de uma decisão envolvendo a Comissão de Atletas. A disputa está na Justiça.

Pedro Scooby na Laje da Besta, na Baía da Guanabara Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Pedro Scooby na Laje da Besta, na Baía da Guanabara Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Lucas Chumbo na Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Lucas Chumbo na Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Michelle des Bouillons, a primeira mulher a surfar a Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Michelle des Bouillons, a primeira mulher a surfar a Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Ian Cosenza na Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Ian Cosenza na Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Lucas Fink na Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação
Lucas Fink na Laje da Besta Foto: Renan Vignoli/Divulgação

— O investimento vem sendo feito, o trabalho vem sendo feito ao longo desses anos, mesmo antes da minha gestão, e não só pela CBSurf, mas pelas federações estaduais. Às vezes o atleta se contradiz quando fala que não tem investimento — rebate Adalvo, apontando que a entidade realizou duas etapas do circuito júnior no ano passado, em Bahia e São Paulo, apesar da pandemia.

— O foco deveria ser a reformulação do trabalho de base, de toda a estrutura do esporte. Mas a questão da judicialização da eleição não tem permitido uma ação mais efetiva nesse sentido — lamenta Pedro Falcão.

Apontado como um dos mais promissores surfistas da nova geração, Mateus Herdy esteve perto de se classificar para o circuito da WSL em 2018. Hoje, segue treinando esperando o retorno do Qualifying Series, a divisão de acesso mundial. Aos 20 anos, o catarinense de Florianópolis sentiu na pele esse enfraquecimento na base da pirâmide brasileira:

 Todos os brasileiros que estão no circuito mundial competiram entre si milhares de vezes no circuito de base. Eles cresceram juntos. Quando eu comecei a competir, percebi que teve uma redução absurda de eventos. A cada ano diminuía a quantidade de etapas e suas premiações. As marcas pararam de patrocinar, não tem quase eventos para a garotada. Infelizmente não vejo uma nova geração se formando.

Juiz-chefe de campeonatos da CBSurf e da Federação Paulista, José Claudio Gadelha não tem uma visão tão pessimista do cenário atual do esporte:

— Não acho que seja uma “tempestade passageira”. O trabalho de base no Brasil é muito forte e temos uma nova geração vindo aí, que agora se espelha nessa galera que compete no circuito mundial — aposta Gadelha, que trabalhou em eventos com os integrantes da “brazilian storm” muitos anos atrás. — Já dava para notar que eram atletas diferenciados.

Marcelo Andrade teme que no futuro, após a passagem dessa “tempestade”, o Brasil não esteja disputando o título mundial. A receita para que o domínio verde-amarelo prossiga na WSL passa por uma questão básica: investimento.

— A gente só vai voltar a criar talentos quando a engrenagem voltar a funcionar.

Do contrário, a tempestade pode acabar e o surfe brasileiro viver um período de nuvens pesadas por muito tempo.

via-O Globo

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